Prestação de serviços fornecida por Sociedades sem fins lucrativos - relação de consumo regida pelo Código de Defesa do Consumidor.
Em recente decisão o Superior Tribunal de Justiça entendeu que as sociedades civis sem fins lucrativos, de caráter beneficente e filantrópico são consideradas fornecedoras de serviços e reguladas pelas normas consumeiristas.
Segundo o entendimento da Relatora Ministra Nancy Andrighi, para que as estas Sociedades se submetam ao Código de Defesa do Consumidor, basta que prestem serviços no mercado de consumo mediante remuneração.
Ementa: Processual civil. Recurso especial. Sociedade civil sem fins lucrativos de caráter beneficente e filantrópico. Prestação de serviços médicos, hospitalares, odontológicos e jurídicos a seus associados. Relação de consumo caracterizada. Possibilidade de aplicação do código de defesa do consumidor. - Para o fim de aplicação do Código de Defesa do Consumidor, o reconhecimento de uma pessoa física ou jurídica ou de um ente despersonalizado como fornecedor de serviços atende aos critérios puramente objetivos, sendo irrelevantes a sua natureza jurídica, a espécie dos serviços que prestam e até mesmo o fato de se tratar de uma sociedade civil, sem fins lucrativos, de caráter beneficente e filantrópico, bastando que desempenhem determinada atividade no mercado de consumo mediante remuneração. Recurso especial conhecido e provido. (Acórdão RESP 519310 / SP; RECURSO ESPECIAL 2003/0058088-5. Fonte DJ DATA: 24/05/2004 PG:00262. Relator Min. NANCY ANDRIGHI (1118). Data da Decisão 20/04/2004. Orgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA). (grifamos)
Esta decisão pode beneficiar milhares de consumidores sócios ou associados destas Sociedades que tem ações na Justiça pendentes de julgamento. Até o presente momento, todas as demandas ajuizadas em faces destas Sociedades requerendo a aplicação do CDC ainda são julgadas improcedentes em Primeira Instância e em recurso de Apelação os Tribunais negam provimento aos recursos mantendo as decisões nos exatos termos em que proferidas.
No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a tese majoritária defendida sempre foi no sentido de que as Sociedades sem fins lucrativos não são regidas pelas normas do CDC, haja vista que a prestação de serviço por estas sociedades não caracteriza relação de consumo.
Todavia, este entendimento não pode mais prevalecer e neste sentido andou bem o STJ ao entender aplicável o CDC para as referidas Sociedades. As Sociedades sem fins lucrativos cobram de seus associados uma mensalidade bastante elevada e é notório que estas Sociedades atuam no mercado como empresas de alta lucratividade no segmento de planos de saúde. Inclusive, concorrem no mesmo nível de igualdade com as empresas privadas de planos de saúde.
Adotar a tese de que estas Sociedades são de caráter beneficente, portanto, que estariam fora das normas reguladoras das relações de consumo, fere frontalmente os direitos básicos dos consumidores associados, haja vista que estes pagam altas mensalidades e estão totalmente desprotegidos e vulneráveis ao regramento estipulado pelas referidas Sociedades, ocasionando um desequilíbrio na relação entre os associados e estas Sociedades.
Os Estatutos destas sociedades geralmente dispõem que os serviços serão prestados aos associados reconhecidamente pobres, o que é uma inverdade, haja vista que o alto valor da mensalidade cobrada impede que uma pessoa reconhecidamente pobre ou em circunstância semelhante venha a se associar a estas Sociedades, pois não teriam como arcar com o alto custo da associação.
As denominadas Sociedades sem fins lucrativos desenvolvem atividades típicas de empresas comerciais, com evidente desvio de sua finalidade, caracterizando nitidamente uma relação de consumo nos termos em que definida pelo CDC. Em relação ao desvio de finalidade, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já proferiu acórdão entendendo ter ocorrido desvio de finalidade da entidade “supostamente” beneficente e determinou a aplicação do CDC. Vejamos:
Ementa: Plano de saúde. Associação Civil. Desvio de finalidade porquanto passou a entidade exercer como principal atividade a administração de plano de saúde. Relação estabelecida com associados de natureza contratual e não estatutária. Relação de consumo regulamentada pelo C.D.C. Possibilidade de aplicação analógica do artigo 28 da Lei 8.078/90. Personalidade jurídica da sociedade descaracterizada. Relação Jurídica estabelecida entre as partes – Cobertura de Assistência médico hospitalar – Limitação na quantidade de aplicação de quimioterapia por contrato ou pelo Estatuto Social-Inadmissibilidade-Transplante-Inexistência-Interpretação que não encontra agasalho em nosso ordenamento jurídico. (Apelação Cível com revisão nº 061.334-4/5. Apte: Centro Transmontano de São Paulo; Apdo: Rosa Maria de Campos. 7ª Câmara O.B., São Paulo). (grifamos)
De acordo com o entendimento ora esposado, não é possível entender que as Sociedades denominadas sem fins lucrativos não agem no mercado de consumo com alta lucratividade, justamente porque cobram valores bastante elevados a título de mensalidade dos seus associados.
Neste contexto, a natureza jurídica destas Sociedades equipara-se, sem dúvida alguma, a de uma empresa com fins lucrativos. Desta forma, seus “contratos” com os associados devem ser interpretados sob a luz do Código de Defesa do Consumidor, haja vista estar devidamente caracterizada uma relação de consumo.
Por outro lado, é importante observar que os associados ou sócios destas Sociedades denominadas sem fins lucrativos, geralmente são colocados em posição de hipossuficiência, haja vista que, embora possam integrar os quadros diretivos da sociedade, não lhes é concedido o direito de aprovar ou rejeitar valores ou discutir as restrições impostas.
O art. 3º do CDC ao conceituar fornecedor prescreve que “Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados” que desenvolvam atividade de “prestação de serviços”.
E o § 2º do mesmo artigo define serviço como “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.
Verifica-se, portanto, que para a empresa ser considerada fornecedora, e, portanto, sujeita às normas do CDC, basta que desenvolva qualquer tipo de atividade no mercado de consumo, mediante remuneração, independentemente da natureza jurídica adotada ou do tipo de serviço prestado.
Nos termos dos preceitos acima, observa-se que as Sociedades em questão se encaixam perfeitamente como fornecedoras de serviços. A Ministra Nancy Andrighi, relatora do acórdão supra citado, ao proferir seu voto sustentou que para a empresa ser considerada como fornecedora, tal como definido pelo CDC, é irrelevante a denominação de sem fins lucrativos, de caráter beneficente e filantrópico.
As denominadas Sociedades beneficentes fornecem aos seus associados alguns benefícios como assistência médica, hospitalar etc., mediante a contribuição mensal de uma quantia, geralmente, bastante elevada. O fato de prestar serviços mediante remuneração corrobora e reforça o caráter da relação de consumo entre associados e as referidas Sociedades intituladas sem fins lucrativos, nos exatos termos em que regulada pelo CDC.
A Ministra Nancy Andrighi, elencou também que em outras ocasiões o STJ já havia se posicionado sobre este assunto, entendo que a natureza jurídica das referidas sociedades não descaracteriza a relação de consumo existente entre a entidade e seus associados (RESP 267.530 DJ 12.03.01; 245.467 DJ 05.03.01).
No RESP 267.530, o Ministro Relator Ruy Rosado de Aguiar em seu voto sustentou que: “O fato de se tratar de uma associação, com estatutos aprovados em assembléia geral, não desonera a ré da obrigação de prestar serviços a seus associados, e nessa prestação deve ela atender ao mínimo que se exige de quem atua na área. A forma assumida pela empresa que se dispõe a oferecer plano de saúde a seus clientes, sejam estes chamados de contribuintes, associados, beneficiários, ou que outro nome tenha, não a dispensa da exigência de oferecer, em contraprestação ao pagamento das mensalidades, o mínimo de segurança que a própria lei hoje prevê.”
Ementa: Planos de saúde: Centro Transmontano. Internação. Hospital não conveniado. (...) A operadora de Serviços de assistência à saúde que presta serviços remunerados à população tem sua atividade regida pelo Código de Defesa do Consumidor, pouco importando o nome ou a natureza jurídica que adota. Recurso não conhecido” (RESP 267.530 – SP (2000/0071810-6) Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ 12/03/01) (grifado)
A jurisprudência pátria vem firmando tese no sentido de que as Sociedades denominadas sem fins lucrativos, são regidas pelo CDC, pois a prestação de serviços destas Sociedades caracteriza uma relação de consumo e há manifesto desvio de finalidade, haja vista que exercem como atividade precípua a administração de planos de saúde.
Vale lembrar também que os “contratos” destas sociedades são de adesão e, considerando as altas mensalidades cobradas dos segurados, ocorre uma adição de ônus aos consumidores e diminui o ônus dos segurados (Sociedades), que sempre buscam reduzir seus custos a zero repassando todos os custos ao associados. Por mais esta razão, razoável é a aplicação do CDC.
Valdirene Laginski
Advogada do escritório Pacheco Neto Sanden e Teisseire Advogados, com atuação nas áreas cível e trabalhista.
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