Desconsideração da Personalidade Jurídica

 

Personalidade jurídica

É um atributo das sociedades. A pessoa jurídica, pelo artigo 20 do Código Civil, não se confunde com a pessoa dos sócios que compõem a sociedade. Desse princípio resulta a personalidade jurídica da sociedade, esta, possui capacidade jurídica para agir em seu próprio nome, ou seja, tem capacidade jurídica para estar em juízo independentemente dos seus sócios, pois goza de autonomia.

Esse atributo denominado personalidade jurídica é um fator incentivador de empreendimentos e novos investimentos, na medida em que não há comprometimento do patrimônio pessoal de cada sócio. Daí surge o incentivo para uma pessoa física fazer parte de uma sociedade.

Os bens da sociedade, em regra, e que garantem o cumprimento de toda obrigação contraída pela sociedade, não se misturando os bens dos sócios. Em razão dessa independência de patrimônio é que muitos sócios se locupletam indevidamente, cometendo vários tipos de fraudes em nome da sociedade, mas em benefício próprio. A personalização das sociedades gera três conseqüências bastante precisas:

a)    Titularidade negocial;

b)    Titularidade processual;

c)     Responsabilidade processual.

 

Desconsideração da personalidade jurídica

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica teve sua gênese no direito norte-americano, que, sentindo as inovações produzidas pelo capitalismo industrial, dentre elas, o uso indevido das ‘corporations”, com vistas à consecução de fins ilegítimos, passou a desconsiderar a pessoa jurídica para atingir a pessoa dos sócios que dela se estavam utilizando indebitamente.

No nosso direito encontrou abrigo, inicialmente, por meio da jurisprudência e, normativamente, pela primeira vez, no Código de Defesa do Consumidor Lei 8.078 de 1990, em seu artigo 28 caput e parágrafo 5º.

No Brasil, o tema foi abordado inicialmente pelo Prof. Rubens Requião, em conferência intitulada "Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica", realizada na Universidade Federal do Paraná. Foi o ilustre professor quem primeiro versou sobre a aplicabilidade da teoria de desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro, concitando nossos juristas a uma análise mais aprofundada do tema.

O Código Civil em seu art. 20, estabelecendo que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros, leva-nos à conclusão de que os sócios não responderão pelas obrigações assumidas em nome da sociedade. Os Bens particulares de sócio de sociedade por cotas de responsabilidade limitada, como regra geral, não podem ser objeto de penhora por dívida da sociedade, pois o patrimônio dos sócios não se confunde com o da pessoa jurídica. O artigo 596, do Código de Processo Civil, no Capítulo IV, da Responsabilidade Patrimonial, não admite essa possibilidade em garantia do sócio que labora com zelo, responsabilidade e em estrito cumprimento da lei e do contrato social.

Podem ser penhorados bens particulares de sócio, em caso de dívida da sociedade, sócio este que sempre exerceu cargo de direção. Mas cabe a ele, conforme artigo 596, §, 1º, do CPC, alegar o benefício de ordem nomeando bens da sociedade tantos quantos bastem para a quitação do débito. Esse é o entendimento do acórdão 728/292 publicado na RT pg. 220 do ano de 1996. O referido acórdão entende que cabe a aplicação da desconsideração da pessoa jurídica para que o sócio responda pelas obrigações da sociedade.

Entretanto, na hipótese de ter o sócio agido com excesso de poderes, infração da lei ou do contrato social, caracterizando atos de malícia e prejuízos à sociedade, seus bens particulares podem ser penhorados de modo a suportar processo de execução movido por credores contra a sociedade. Nesses casos, a jurisprudência pátria, vem se socorrendo dessa teoria, cada vez mais freqüente, admitindo a responsabilidade pessoal, solidária e ilimitada do sócio, em vários casos concretos, com o intuito de impedir a consumação da fraude e abusos de direito cometidos por meio da personalidade jurídica.

A aplicação dessa teoria faz-se necessária naqueles casos em que é demonstrado que o sócio exerceu conduta faltosa, agindo com excesso de poderes, infringindo leis ou dispositivos do contrato social ou estatuto, vindo a causar prejuízo a terceiro de boa-fé, caso em que o Poder Judiciário poderá atender ao pleito do credor e aplicar a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, determinando a penhora de bens do sócio para saldar a dívida social.

Há vários acórdãos no sentido de desconsiderar a personalidade jurídica e penhorar bens dos sócios, entre eles podemos citar os acórdãos publicados na RT 725, pg. 278, ano de 1996 e RT 650, pg. 180, ano de 1990.

A ementa do acórdão RT 725, diz o seguinte: “é de aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica toda vez que se patenteie o recurso de pessoas físicas de agir sob a forma de pessoas jurídicas para lesar a outrem”.

         Percebendo o juiz a manipulação dos sócios para fugir das responsabilidades a ele imputadas, poderá desconsiderar a personalidade jurídica, desde que haja prova evidente do fato. Assim, se uma sociedade foi extinta com objetivos de lesar pessoas com quem tinha débitos, (RT 660, pg. 180), e havendo provas inequívocas de tal fato, devem os sócios responder com seus bens patrimoniais pelas dívidas da sociedade.

Mas, para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica não basta apenas indícios ou presunções de fraude. Deve haver prova incontestável, assim foi o entendimento do TJBA que considerou inaplicável o instituto por exigir prova inconteste (RT 736/315, pg. 244, ano 1997).

         Um acórdão publicado na RT 654, pg. 182, ano 1990, aplica a teoria da desconsideração da personalidade quando o sócio agiu de má-fé, emitindo cheques sem fundos. Deve, portanto, o sócio que agiu de má-fé responder pelos seus atos perante seus credores, pois a personalidade jurídica da empresa não pode ser usada para encobrir fatos fraudulentos, assim diz o referido acórdão: “A emissão de cheques sem fundos, sem dúvida, viola a lei, e com tal conduta, seu emissor pratica ato ilícito e fraudulento, devendo responder pelos valores neles constantes”.

Outro caso interessante citado por João Casillo em artigo publicado na RT - 528, (texto extraído do artigo de Josivaldo Félix de Oliveira in O Neófito – Revista Eletrônica) foi julgado pelo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo (RT 418/213), tem a sua ementa assim redigida: "Sociedade comercial - Marido e mulher - Nulidade - Embargos de terceiro – improcedência – Recurso improvido”.

         A embargante recorrente alegou que seus bens não poderiam ser penhorados por dívida da sociedade. E o acórdão entendeu que sim, porque a sociedade limitada entre marido e mulher seria nula. Seria nula "porque tal sociedade visa à modificação do estado, que a lei estabelece para a própria sociedade conjugal, com o objetivo de não envolver todo o patrimônio do casal nos azares do comércio". Este entendimento nada mais está querendo dizer do que: a sociedade entre marido e mulher caracterizaria uma fraude à lei (modificação de um regime de bens, por via travessa que a lei não permite). E, neste caso, a sociedade não é levada em consideração, podendo o credor agir contra os bens dos sócios.

         O objetivo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é evitar que através do uso indevido da sociedade, materializado pela fraude ou pelo abuso de direito, se possa lesar direitos dos credores. Caracteriza-se, a fraude, quando o devedor pratica atos de disposição patrimonial sendo insolvente ou na iminência de o ser; ao passo que o abuso de direito pode ser verificado sempre que o devedor exorbite de seu direito, advindo de tal conduta prejuízo a terceiros.

         Fábio Ulhoa Coelho diz que: "somente quando a pessoa jurídica for utilizada para a realização de uma fraude ou abuso de direito é que o juiz está autorizado a ignorá-la. O simples prejuízo de terceiros em razão da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais nunca será, por si só, fundamento para a desconsideração. Sem elemento subjetivo, intencional, destinado a ocultar a ilicitude atrás da pessoa jurídica, não há como superar a autonomia patrimonial que a caracterize. Se inexistir fraude ou abuso de direito, a personalização da sociedade, associação ou fundação deve ser amplamente prestigiada”.

         Rubens Requião tem o mesmo pensamento, para ele, "diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou abuso de direito, ou se deve desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos e abusivos”.

Portanto, pela teoria da desconsideração, permite-se que, em casos excepcionais em que o sócio, utilizando-se da sociedade em desacordo com os fins para que fora concebida pratica fraudes ou exorbita de seu direito, seja possível levantar-se o véu que o encobre, para responsabilizá-lo pessoalmente. Não se trata de negação da pessoa jurídica, mas apenas da desconsideração de sua existência no caso concreto, imputando-se ao sócio a responsabilidade pelas obrigações pessoalmente assumidas em nome da sociedade, posto ter sido este que auferiu real proveito quando da efetivação do negócio. Sobrepuja a pessoa jurídica aquele que dela se utiliza indevidamente, conquanto em tal hipótese, a sociedade deixa de ser sujeito de direitos para ser mero objeto ou instrumento a serviço do sócio. Só deve ser aplicada tal teoria nos casos concretos quando os sócios utilizarem a sociedade com vistas a obter negócios fraudulentos afrontando a lei.

 

Diplomas que incorporam a teoria da desconsideração da personalidade jurídica

Diversos diplomas na nossa legislação incorporaram o espírito da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, entre os quais podemos citar como exemplo:

A CLT, em seu art.2º, parágrafo segundo, onde é prevista a responsabilidade solidária, para efeitos de relação empregatícia, da empresa principal e subordinada, quando constituam um conglomerado econômico. O objetivo legal é prevenir situações onde o trabalho pudesse ser utilizado como meio de produção das várias empresas e o ônus de pagar a remuneração respectiva recaísse na empresa de patrimônio insuficiente, restando, em conseqüência, lesado o direito do empregado. Não se exige para tanto a prova de fraude ou de abuso de direito.

         O CTN, art. 134, VII, em que é prevista a responsabilização pessoal do representante legal da pessoa jurídica, caso exorbite de seus poderes.

         A Lei do Sistema Financeiro (Lei 4.595/64) dispõe sobre a proibição de certos negócios ou operações serem efetuados entre a instituição financeira e pessoas jurídicas cujo capital tenha sido majoritariamente constituído pelos administradores daquela instituição. Além de responsabilizar solidariamente diretores e gerentes das instituições financeiras pelas obrigações assumidas pelas mesmas durante suas gestões.

         A Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/76), que estabelece limites ao reconhecimento da pessoa jurídica ao elidir a distinção entre essa e seus membros pelos atos ilícitos por eles praticados.

 

A desconsideração da personalidade jurídica no código de defesa do consumidor

A Lei nº 8.078/90, que dispõe sobre a proteção e defesa do consumidor, admite a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica quando em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social (art. 28). Será efetivada a desconsideração também quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocadas por má administração, ou, ainda, quando a pessoa jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores (parágrafo quinto). Assim, em relação aos consumidores, por haver o art. 8º e seus parágrafos elencado os casos específicos em que se efetivará a desconsideração da personalidade jurídica, não há, na prática, mais dificuldade.

Conforme dispõe o referido artigo, o juiz poderá desconsiderar a pessoa jurídica, levantando a capa que a protege, sempre que ela for utilizada como obstáculo ao ressarcimento dos danos sofridos pelo consumidor. Em essência e originariamente, a desconsideração ocorre quando se verifica, por parte da sociedade constituída legalmente, fraude à lei ou abuso de direito.

Artigo 28 – “O Juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houve abuso de direito, excesso de poder infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.

Exige, a primeira parte do caput, a lesão dos interesses do consumidor, ao passo que a segunda reclama a má administração da pessoa jurídica como condicionante de sua desconsideração.

Parágrafo 5º - “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.

Também se refere a casos de abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Permite ainda a desconsideração em casos de falências, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Assim, o Judiciário pode, por determinação legal, ignorar, no caso concreto, a existência da pessoa jurídica, responsabilizando diretamente os sócios. Significa, em outras palavras, que o responsável pelo uso indevido da personalidade jurídica fica comprometido com a obrigação.

 

Amplitude da lei

É ampla a desconsideração prevista no CDC, alcançando qualquer situação em que a autonomia da sociedade for obstáculo ao ressarcimento do consumidor lesado.

Antes do CDC, a jurisprudência brasileira já vinha adotando a doutrina da desconsideração para afastar a autonomia da pessoa jurídica, com o objetivo de atingir a pessoa física responsável pela fraude ou abuso de direito.

         A norma do art. 28 retro citado, é dirigida fundamentalmente ao juiz. O Código tem caráter protetivo e, como tal, se presentes as circunstâncias previstas no dispositivo referido, o julgador pode descobrir o véu da pessoa jurídica para atingir as pessoas físicas que dela fazem parte. O magistrado, porém, precisa observar o princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa.

 

BIBLIOGRAFIA

- Manual de Direito Comercial

Fábio Ulhoa Coelho, Ed. Saraiva, SP, 1996.

- Curso de Direito Comercial

Rubens Requião, Ed. Saraiva.

Textos excluídos das Revistas Jurídicas eletrônicas:

- O Neófito - Suiane de Castro Fonseca – Acadêmica do curso de Direito do UFRN

- Boletim Jurídico TravelNet

- Josivaldo Félix de Oliveira – Juiz de Direito e professor da ESMA

- Miguel Lucena Filho – Delegado da Polícia Civil do Distrito Federal e pós-graduado pela Escola da Magistratura da Bahia.

- Francisco José de Campos Amaral - Advogado em Brasília, especializado em Direito Comercial e Civil – extraído do site do Correio Braziliense.

 

Valdirene Laginski

Advogada do escritório Pacheco Neto Sanden e Teisseire Advogados, com atuação nas áreas cível e trabalhista.

Permitida a reprodução do texto, desde que citada fonte.